Meritocracia do além e transição planetária
Um jovem negro e pobre (quanto mais negro, mais pobre e quanto mais pobre, mais negro) é apreendido pela polícia por porte de entorpecente. Vai para o centro de detenção e depois para alguma instituição de recuperação de drogados onde passa um tempo razoável sob tratamento duvidoso submetido a maus tratos até estar supostamente apto à convivência social novamente. Ninguém levou em consideração se era usuário ou traficante, não faz diferença. A condição social e a cor da pele dizem muito mais sobre o cidadão do que a sua ficha policial.
Tendo pago sua dívida com a sociedade volta para o seu cotidiano agora com uma condicionante - sua reputação está marcada pelo seus atos. Não vai ser fácil conseguir trabalho ou emprego. Sem a presença de um estado participante das questões sociais para promover a reintegração do cidadão ao mercado de trabalho haverá pouca oportunidade de serviços para que consiga minimamente se manter. Até aqui que aprendizado este jovem pode tirar da sua experiência?
Vamos acrescentar um fator. Neste ponto a sua memória é apagada e ele tem a chance de começar de novo. Então ele retorna ao mesmo cenário, sob as mesmas condições simplesmente para cometer os mesmos erros. Depois de repetir o ciclo uma infinidade de vezes ele tem a intuição de que tudo isso já aconteceu antes mas não sabe como agir porque não se lembra do que houve nas vezes passadas e não consegue evitar o erro.
É uma verificação de redundância cíclica, uma falha do sistema, um eterno "bater de cabeça".
Cabem aqui algumas perguntas: Quem definiu as regras do sistema? Quem definiu as condições em que o sujeito iniciaria essa experiência? Com base em quê? Há algum requisito pré existente? Era necessário um antecedente de bom comportamento que determinasse com quais vantagens ou desvantagens ele seria inserido no contexto?
Há uma dicotomia nessa estória. Experimentar, aprender e seguir em frente é a base do empirismo, a evolução do aprendizado a partir da prática. O esquecimento conduz a repetição do erro e a estagnação. Não pode haver evolução em um sistema falho como esse já que é reconhecida a capacidade humana em aprender com os próprios erros. E esse é um dos motivos pelo qual a ciência se contrapõe à religião.
A ideia da transmigração do espírito de um corpo incapaz de continuar vivo para outro novo é antiga. Os hindus já a cultivam a milhares de anos. Os cristãos também mas o dogma foi abolido no século VI durante o segundo concílio de Constantinopla quando Teodora, esposa de Justiniano, para evitar de ter que pagar por seus crimes em outra existência, já que era escravocrata e temia reencarnar como escrava negra, exerceu seu poder político para pressionar o papa e retirar o texto. O herói da epopeia Mahabharata, Arjuna foi de certa forma livrado da responsabilidade pelo extermínio do exército inimigo por seu mentor Krishna. Arjuna, em profunda depressão sentiu o pesar das mortes de milhares de pessoas incluindo familiares mas foi acalentado por Krishna que lhe ensinou a enxergar uma possível verdade transcendental através dos ciclos encarnatórios. Ambos parecem motivos bem convenientes para se cometer tais atos.
Segundo os teóricos desse princípio os ciclos encarnatórios serviriam para a evolução do espírito que a cada retorno teria a oportunidade de consertar os erros e dar novos passos em direção a "auto realização" e se não conseguem fazer isso tendem a repeti-los eternamente. Isso nos dá a impressão de que quem criou essa lei é muito justo porque dá ao espírito a oportunidade de se regenerar. Mas, uma vez em um novo corpo o espírito não lembra da sua experiência passada. Então isso serve pra quê?
Se o indivíduo por sua condição atual está pagando por um erro cometido em uma existência anterior como saberá se houve justiça no seu julgamento quando não consegue lembrar do que fez para reclamar perante a tribuna, consertar ou evitar a repetição? Como saberá se houve realmente um erro primordial escondido no passado de suas vidas pregressas?
Estaríamos vendo o velho dogma do pecado original sendo perpetuado através de novas filosofias?
Para as religiões essa pergunta é fácil de responder. Se você está em dificuldade é porquê mereceu, está pagando por um erro que cometeu no passado e dê graças a deus por ter a oportunidade de corrigi-lo através da sua desgraça. Deus, se é quem está por trás dessa retórica seria um tipo canalha que bate e diz "Você não sabe porque está apanhando mas eu sei porquê estou batendo" ou vice-versa.
O dogma da reencarnação para alguma pessoas veio para substituir o dogma católico da vida eterna por um motivo bastante compreensível. A vida eterna no além túmulo é algo inimaginável, a mente humana não consegue lidar com a natureza dessas coisas e por mais que se queira acreditar uma certa margem de desconfiança permanece. E se não for exatamente assim? E se o julgamento não for bom e ao invés de ir para o céu ir para o inferno. Nesse caso seria melhor voltar para a terra em um corpo físico. Sabemos exatamente o que encontrar de volta ao plano material. Além do mais todos querem uma segunda chance apesar do que disse um filósofo do século 20 "Todo mundo quer ir para o céu mas ninguém quer morrer" Definitivamente a espécie humana não aprendeu a lidar com a própria finitude, nada dá mais sentido à vida do que a morte. É por causa dela que nos entregamos a toda sorte de azares no afã de desfrutarmos tudo o que for possível no tempo que nos resta, essa eterna incógnita.
Se falo tanto de crime e castigo é porque existe ainda uma outra questão a ser tratada nesse escopo. Uma hipótese que vem ganhando terreno nos últimos tempos especialmente por causa das tribulações as quais o planeta tem sido submetido é a transição planetária.
Vaticinada por um célebre médium do século 20 (não Edgar Cayce) a teoria preconiza que um período de transição para a humanidade planetária se dará a partir de "não se tem a menor ideia" até "não se sabe quando" durando "sabe-se lá quanto" onde o planeta passará por um upgrade deixando de ser um mundo de espiação para se tornar um mundo de regeneração. Isso significa que uma horda de "coisas ruins" (incluindo o atual presidente deste país, espero) serão banidas deste plano ficando apenas os espíritos com capacidade de se aperfeiçoarem. A tal profecia não parece ser nenhuma novidade, ela não é em nada diferente da descrita por João evangelista no apocalipse e também guarda outra similitude, a atemporalidade ou intempestividade. Ora, em se tratando de religião não há aí nenhuma surpresa, quem é que não conhece o ditame "para deus um século é o virar de uma página"?
É comum para os adeptos dessas novas correntes filosóficas se referirem ao planeta terra como uma prisão para o espírito, um complexo penitenciário, uma ilha de Alcatraz gigantesca vagando pelo oceano cósmico de onde não é possível fugir. Será por esse motivo que os astronautas sempre voltam pra casa trazidos pela maré gravitacional?
Esse planeta prisão está situado em um lugar estratégico na galáxia, mas especificamente na sua periferia bem longe de outros mundos habitados. Será por isso que não conseguimos fazer contato com outras civilizações?
É confortante saber que eles tem explicações para tudo enfim.
Suponha que a humanidade habite este orbe. Se não há como evoluir porque o sistema é falho como progredir com a pena? E se ainda assim houvesse tal progressão não seria mais lógico que o detento fosse liberto e fosse para outro local? Dever-se-ia deduzir que todos os detentos terminassem as suas penas ao mesmo tempo para que a prisão mudasse de status e passasse a ser uma moradia de ex-delinquentes recuperados. Ou seria então um habeas corpus coletivo. Há algum sentido nisso?
O que vemos de fato é que durante quase toda a história da humanidade não houve praticamente nenhuma evolução ética e moral, somos quase tão bárbaros e imorais quanto éramos na pré história.
Cometemos as mesmas atrocidades pelos mesmos motivos, mudamos apenas o método. Somos carniceiros tecnológicos, escravizamos através do dinheiro virtual, estupramos os valores mais caros como a liberdade e a democracia e assim acabamos com qualquer esperança de um futuro sóbrio e pacífico.
Como disse o eterno Tio Maneco "A humanidade deu errado".
Por que pensar que mereceríamos uma casa grande mais arrumada quando não conseguimos nem arrumar nossa casa interior? Porque o merecimento é o grande trunfo dos sistemas de crença, a recompensa pelo bom comportamento. Seguimos em frente na nossa ingenuidade nos enganando achando que estamos nos comportando bem e assim teremos nossa recompensa - além da camiseta, boné e crachá.
Pode ser que a tal transição seja outro tipo de mudança. Quando o comportamento dos detentos chega a certo nível de insubordinação o endurecimento das penas costuma ser posto em prática. A devastação humana e econômica promovida pelo novo vírus impôs o medo no seio dos lares por todo o globo sem distinções entre ricos, pobres, inocentes, culpados, feios ou bonitos. Nem os que se achavam mais evoluídos escaparam, não tenho visto nenhum religioso que tenha conseguido segurar o tremor do queixo.
E por isso eu acredito por ser mais lógico que, mesmo se essa estratégia não der certo o responsável por isso (e deve haver alguém) preferirá trocar o diretor da penitenciária do que promovê-la a status de ilha da fantasia.
Débora Zimmer
Boa tarde, meu caro Oldair Vieira!
ResponderExcluirFoi um prazer ler seu texto. Uma bela reflexão sobre a caminhada e a estadia da humanidade sobre o Planeta. É verdade que as religiões têm explorado essa questão da recompensa a partir de um plano espuritual: reencarnação, salvação, condenação...
Não esperemos por isso. A Ciência já mostrou: depois de mortos, nós descemos. E pronto.
Uma boa recompensa pelos bons atos praticados viria através de uma prática social positiva, com vistas ao bem-estar coletivo, que levasse em conta direitos e deveres iguais, com justiça para todos.
A evolução científico-tecnológica já ocorreu. Falta ao homem trabalhar seus valores éticos e sociais para gozar a vida enquanto vive.
Ocorre que se construiu uma sociedade viciada nas iscas jogadas pelo capitalismo. Aí fica difícil se desintoxicar.
O CORONAVÍRUS está aí para limpar a Terra e para nos ensinar que bala não mata vírus e que não passamos de alimento de vernes.
Nossas palmas para Augusto dos Anjos.
O ser humano não aprende.
ResponderExcluirNão há possibilidade de progressão da pena, caso o julgador exista, pois os erros são sempre os mesmo, como você bem pontuou.
A mais recente pandemia, que ainda vivemos e não sabemos até quando, não deixará nenhuma mensagem e nenhum ensinamento. Os ricos estão doidos atrás de liberação para continuar a exploração de seus empregados, que, por não ter outros meios de vida e nem conseguir entender sua importância para os ricos, mesmo com o abalo que sua ausência está provocando na casa grande, voltarão como os cordeiros que foram ensinados a ser para servir aos amos.
E o ciclo continuará, pois como os explorados não conseguem entender sua posição no mundo, também não ensinam a seus filhos que eles podem ser livres. Ensinam que sempre foi assim e sempre será.
Aqui e ali alguns se libertam. Enxergam o caos. Mas, em geral, o excluído tende a criminalizar quem vem lhe contar a realidade da vida. Pobre não vota em pobre. Pobre gosta de bacana e vota em quem lhe promete a chibata mais forte no lombo.