Se eu não sou quem eu sou então quem sou eu?
Eu poderia ter tido uma vida diferente da que eu tenho hoje. Poderia ter feito escolhas diferentes das que eu fiz. Isso me traria mais conforto pois eu poderia facilmente ter lançado mão dos meus direitos como deficiente e optado por uma vaga preferencial em um posto de trabalho em algum órgão público. Teria segurança, estabilidade e quem sabe tempo pra fazer outras coisas que desse sentido a minha vida. Isso considerando que eu fosse uma pessoa "normal". Então como cheguei ao ponto em que estou?
É preciso entender que uma coisa depende de outra e uma escolha desastrosa gera uma sequência de catástrofes seguidas. Apesar de não ter nenhuma deficiência cognitiva, sempre tive facilidade em aprender coisas, o ambiente escolar foi sofrível pra mim desde o primeiro ano. Eu não conseguia me adaptar, quando a professora falava comigo eu entrava em pânico e desabava a chorar. Não tive nenhum atendimento psicológico, a impressão que tenho hoje é que à época os professores nem sequer tinham conhecimento ou instrução para detectar transtornos que hoje são corriqueiramente diagnosticados nas crianças em idade escolar. Ao invés disso ganhei um apelido pejorativo.
Mas fui levando em frente "on a wing and a prayer" apesar das crises provocadas pela disforia de gênero até que em um dado momento tornou-se insustentável. Eu precisava de algo que me ajudasse a diminuir a angústia e encontrei as artes. A escola ficou de lado. É claro que isso não aconteceu sem eu levar uma centena de sermões da minha irmã "perseguidora implacável" que insistia em sua tese moralista, conservadora e autoritária de que eu era uma criança mimada e merecia uma surra. Ela nem sequer imaginava que eu sofria de ansiedade, síndrome do pânico e depressão porque era transgênero.
E assim, sem estudos as oportunidades se foram pois não teria como prestar concurso. Decidi que minha carreira seria artística e sinceramente até que não me saí mal embora as dificuldades ainda sejam quase intransponíveis.
De qualquer forma o conflito de identidade moldou a minha personalidade me transformando em uma pessoa insegura e sem ação, ás vezes agressiva demais, ás vezes passiva demais fazendo julgamentos que se baseavam na minha insegurança tomando decisões inapropriadas e perdendo oportunidades. Fiz pessoas que eu amava infelizes, fui egoísta e cínica. Destruí meus relacionamentos imputando culpa a quem me ajudava. Me tornei a pessoa mais horrível que eu já conheci.
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Mas nem tudo foram desastres, também acertei eventualmente. Consegui sobreviver até hoje mais ou menos inteira apesar das cicatrizes (e são muitas) e começo a enxergar um horizonte mais limpo pois os obstáculos que se posicionavam à minha frente eu mesma havia colocado e agora tenho condições de removê-los. Estou voltando a estudar, já fiz o ENCEJA e eliminei a primeira etapa. Não para dar satisfação à sociedade ou pleitear um emprego mas para tirar um peso das costas. Antes de conhecer a psicologia e aceitar que as escolhas que eu fiz foram induzidas pela situação em que eu me encontrava me sentia culpada e não conseguia me perdoar. Apesar de tudo sempre fui uma pessoa corajosa, muitas vezes insensata, é verdade.
Então se esse simulacro ao qual as pessoas se dirigiam, essa projeção espectral de uma personalidade imatura egoísta e disfórica não era eu de verdade quem eu sou? Ainda não sei ao certo mas tenho clareza do que quero ser: uma mulher corajosa que sabe o que quer. E o querer com toda a força do espírito é força motriz mais poderosa do universo.
Débora Zimmer
Que atire a primeira pedra na própria cabeça quem disser que se conhece. Que sabe quem é.
ResponderExcluirA vida nos ensina que não há certezas, somente dias e dias a serem vencidos.
Mas deixemos de repetir coisas parecidas com auto ajuda.
O que vejo é uma pessoa corajosa, como sempre, mesmo sem imaginar esta sua situação, eu acreditei que você fosse.
Valeu, Débora!
Desde o dia em que você me falou sobre isso no zap, venho pensando a respeito e, como disse lá, só posso apoiar você e dizer que muitos não lhe abandonarão devido à sua decisão de se revelar.