Se a vida te der limões...

                                                Foto e Maquiagem: Vanessa de Lima

    O peito aperta, o coração dispara, o estômago dói, o ar falta, os pensamentos rodopiam dentro da cabeça, é um verdadeiro brainstorm. No momento em que eu escrevo essas palavras mal consigo ordenar minhas idéias, me obrigo a escrever porque parece ser a única coisa sensata, a única coisa que exige a minha atenção integral e funciona como uma tipo de mantra ou meditação. Quer saber se eu estou com medo? Eu estou apavorada!! Meu pensamento transita entre duas possibilidades, o medo da rejeição, de passar por ridícula ou "tocar o foda-se" e não ligar pra nada nem pra ninguém. 
    Não foi uma decisão fácil assumir minha transgeneridade, mais difícil ainda será daqui pra frente, é o que eu imagino. Mas aí eu lembro das mensagens de carinho e apoio que eu recebi dos meus amigos e a dor no peito alivia. Eu sou uma pessoa única, eu sei disso. Sei que certas coisas só eu posso fazer, fui forjada na fornalha da vida, no caldeirão do inferno, na panela do diabo. O primeiro evento importante da minha vida foi ter contraído poliomielite e me tornado deficiente. Aos 8 anos eu me descobri transgênero quando esse termo nem era conhecido das pessoas simples (e ainda não é), aos 10 eu comecei a sofrer crises de ansiedade, pânico e tive a minha primeira grande crise de depressão o que me levou em uma noite, no fundo do quintal com minhas bengalinhas e órteses, no escuro, só de calcinha e chorando recorrer a única coisa que eu tinha esperança de poder me ajudar, a misericórdia de Deus a quem eu pedia que me desse um corpo de menina. E assim foi ao longo dos anos sempre me escondendo, uma vida inteira de sofrimento inexpressável. 
    Eu já disse em outro momento que eu nasci em uma família de tradição católica retrógrada e falar sobre isso seria absolutamente impossível, aliás era impossível falar sobre qualquer coisa, as pessoas simplesmente não conversavam e quando miseravelmente o faziam era para impor a sua autoridade de irmão ou irmã mais velhos com seus intermináveis sermões. Minha mãe, uma senhora bondosa e ingênua apenas falava sobre as desventuras da vida sob a ótica da religião e meu pai era um cínico que fazia chacota com assuntos sérios e fugia de casa toda vez que acontecia algum problema familiar. Apesar disso fui muito bem cuidada por uma irmã que nem era filha dos meus pais. Mas nem mesmo com ela eu poderia falar sobre isso.
     Imagino que neste momento você esteja se perguntando por que eu estou me expondo dessa maneira. É porquê existem centenas, talvez milhares de casos iguais a esses, pessoas sofrendo como eu sofri que não tem a oportunidade de se expressar e colocar pra fora suas dores, os seus desajustes familiares, os seus pesadelos pessoais. Essas pessoas precisam ser ouvidas, precisam ser acolhidas, precisam ser amadas assim como eu precisei, preciso e precisarei. Não é porquê eu tenho a coragem de me abrir que eu esteja resolvida comigo mesma. Isso é um processo que começa e não se sabe como vai terminar embora a nossa realidade demonstra que muitos acabam em suicídio. Eu mesma perdi a conta de quantas vezes pensei em desistir de tudo, quantas manhãs de noites mal dormidas em que eu não queria me levantar da cama porquê achava que não valia a pena. Quantas histórias por aí acabam mal e ninguém sequer chega a saber quais foram os motivos? 
    Eu segurei essa barra por toda a vida e durante esse tempo me casei duas vezes, tive duas filhas e um filho todas maravilhosas pessoas com as quais eu aprendi mais do que ensinei e estão me socorrendo neste momento estranho. E então, chegada a hora da verdade eis que me sinto com uma arma apontada pra cabeça, era assumir a minha condição e seguir a vida ou mergulhar em um mar de auto destruição que inevitavelmente levaria ao fim de tudo. Felizmente conheci profissionais excelentes que me ajudaram a tomar a decisão certa. A eles, todo o meu respeito e admiração. 
    Eu sei que muita gente vai ficar chocada com esse relato especialmente as que me conhecem a mais tempo. Dirão que jamais teriam imaginado. Estavam cegas para aquilo que estava acontecendo debaixo dos seus narizes, porque resolveram simplesmente ignorar os sinais, porque a sociedade aprendeu a normalizar e relativizar o sofrimento do próximo. Aqui eu deixo uma pergunta: Saber que eu era aquele cara que você conhecia lá do estúdio, que tocava boas canções e consertava equipamentos nas horas vagas agora é uma mulher transgênero de alguma forma te incomoda? Se a sua resposta é sim então esse lugar não é para você. Felizmente a vida me presenteou com amigos maravilhosos e até agora nenhum deles me abandonou, a minha gratidão para eles é eterna. Eu sigo em frente nessa jornada muito bem acompanhada. 
    Meu nome é Débora Zimmer e tenho orgulho de ser uma mulher trangênero.

Comentários

  1. Débora, o link dessa postagem chegou no whatsapp e quando abri, apesar da surpresa inicial, consegui sentir o seu alívio.
    Tô bem feliz por vc, sabia!? Acho lindo ver a força e a coragem de uma mulher sobressaindo aos medos e julgamentos.
    Beijo grande!

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