Autoimagem

 



    -A Maria Lis começou a andar com 10 meses! Disse minha amiga.
    -O Gustavo andou com 11. Disse a outra.
    -Eu andei com 8. Disse eu.
    -Nossa! 8 meses? Perguntaram...
    -8 anos. Respondi.
    Não sei se foi mesmo com 8 anos que eu andei mas, se não, foi bem por aí. Eu tinha uma órtese com cinturão pélvico que odiava, não conseguia me mexer. Eu me sentia mesma dentro de uma "Iron Maiden"!! Meu pai percebendo que eu não ia usar aquela coisa fez a gentileza de serrar a parte de cima da órtese (o técnico do Sarah deve ter ficado uma fera) e me libertou da tortura. Deu tão certo que em pouco tempo eu estava andando pra todo lado e deixando minha mãe louca da vida quando ia passear sozinha pela vizinhança e demorava a voltar. Tinha vantagens! As vezes eu ia para a feira do P Norte, os feirantes ficavam com dó da minha condição e me davam frutas. Era bárbaro!! Serelepe, asas nos pés de alumínio voei para todos os cantos. 
    Esse anseio por liberdade se deveu a um fato. Antes disso eu ficava sempre no chão andando de gatinhas e meu alcance territorial era muito pequeno. Os amigos da rua não queriam brincar comigo, preferiam meus irmãos que podiam ganhar as ruas da favela com eles. Eu só tinha um amigo, e era fácil saber porque, pra não ficar só eu permitia que ele fizesse brincadeiras desajeitadas comigo e minha mãe odiava isso. Mas tudo mudou quando eu ganhei asas... e bengalas. 
    Até aqui a narrativa foi lúdica. Mas nem tudo são flores... Foi me colocando de pé sobre minhas próprias pernas que eu descobri uma coisa terrível. Uma criança deficiente não tem exata noção de que é deficiente, sabe que é diferente das outras crianças mas se imagina igual a elas. Pelo menos era assim pra mim já que na minha casa extremamente pobre não existia um espelho onde eu pudesse me ver de corpo inteiro. E foi em um dia quando eu e meu pai fomos a uma consulta no Sarah  (hoje Sarinha) que eu me vi de corpo inteiro pela primeira vez no reflexo das vidraças do complexo hospitalar. Aquela visão foi um choque terrível pra mim, eu não sabia que era daquele jeito, uma torção estética e assimétrica completamente diferente do que eu via nos meus colegas, um corpo disforme moldado pela sequela de uma enfermidade. Essa visão me afetou de tal maneira que eu passei a evitar qualquer espelho ou reflexo onde eu pudesse me ver por inteira. Posso garantir que isso durou mais de trinta anos. 
    Nesse ponto farei algumas considerações. Sempre que se trata de assuntos dessa natureza algumas pessoas apelarão para o argumento do mimimi (tipo: lá vem ela de novo!) e para calar a boca e os ânimos de certas pessoas vou citar um exemplo. Sabemos que a vaidade feminina é um fator fortemente influenciado por questões culturais delineadas em um mundo machista por padrões europeu-caucasiano/greco-romanos. Essa imposição não foi e nem vai ser vencida facilmente nos próximos séculos e tem o poder de influenciar até as mentes mais brilhantes do universo acadêmico. Quantas mulheres (e muitos homens também) vocês conhecem que não sucumbem à vaidade? Esse, porém, é um assunto extremamente complexo e não pode ser destrinchado aqui, eu apenas o introduzi para justificar o exemplo que vou dar a seguir. Pois bem, existe uma pessoa, uma mulher, amiga de uma amiga da minha ex-esposa que tem uma pequena deficiência em um dos pés. Sinceramente, se não tivessem me mostrado eu nem teria percebido. Essa deficiência tão pequena é um tormento na vida dela e se alguém sequer tocar no assunto ganha a sua inimizade instantaneamente. Faz de tudo para esconder. Pode-se deduzir daí a importância do padrão estético para tal pessoa e eu não estou aqui para criticar ou condenar tal atitude mas para fazer notar que se para uma pessoa com um pequeno desvio de um membro do corpo a sociedade com seus costumes pode ser cruel imagina para uma pessoa com o corpo todo deformado por uma enfermidade. Existem pessoas que não se conformam com os seus atributos estéticos e por isso as clínicas estão sempre cheias. Outras querem pular da ponte por causa de um nariz curvado ou um culote excedente. É claro que esses são casos extremos. 
    Entre pessoas com deficiência costumamos usar um termo romântico - temos corpos fora do padrão, o que termina sendo bastante significativo porquê em uma sociedade justa que presa pela diversidade a padronização é um conceito completamente antidemocrático. Mas mesmo com a evolução desses conceitos ainda é extremamente difícil para uma pessoa deficiente se aceitar como é sem ficar se comparando com outras (é claro que eu queria ser como a Priscila Guimarães) especialmente se for transgênero. Aí a coisa pode complicar um pouco mais... ou não!! 
    Segundo Leandrinha (transgênero e deficiente) a pessoa com deficiência já vive uma condição permanente de disforia, quem é que se aceita facilmente em um corpo "fora de padrão"? Pessoas podem fazer diversos procedimentos estéticos e se tornarem mais esculturadas e graciosas mas dificilmente se tornarão menos deficientes (a não ser que haja algum milagre tecnológico da medicina escondido em algum lugar e, se houver estará acessível provavelmente apenas para as elites). Entretanto, eu pessoalmente acredito que a minha condição de deficiente me exime da obrigação de ter um corpo feminino "passável" o que de qualquer maneira não será possível mesmo e ninguém poderá me cobrar isso porque se cobrar terá de ir comer capim em outro pasto e com o chifre bem aparado. 
    Pois então, eis que o improvável aconteceu!! A disforia de gênero e consequente transgeneridade me ajudaram a me aceitar no corpo que eu tenho. Desde muito cedo eu não me encaixava no padrão masculino que me era imposto e na minha auto imagem nenhuma indumentária preenchia o requisito. De repente comecei a me ver no espelho através da minha verdadeira natureza, as vezes até me achando bonita. E por que não? Eu sou o que sou porque sou. E tem sido assim. Aí eu conheci a Luana Rayalla e se vocês tiverem a coragem de ler esse texto dela vão esquecer tudo o que eu falei em 5 minutos...

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