A música de hoje não presta?
A música de hoje não presta?
Depende de quem analisa e sob qual ponto de vista. Tomemos o hoje como sendo o hoje mesmo, 01 de janeiro de 2021. O que temos para trás? Séculos de produção desde que a música se tornou um bem imaterial, uma expressão cultural e artística, um acessório ritualístico, e tudo o que ela pôde ser até então.
Olhando em retrospectiva tivemos momentos diversos na história onde a música ocupou funções diferentes na sociedade, um historiador consegue analisar isso de forma desapaixonada sem envolver suas preferências. Mas a maioria das pessoas vai pender a sua análise para o seu gosto pessoal, e essa preferência é fortemente influenciada por experiências afetivas com perfil psicológico.
A coisa mais comum é ouvir nossos pais dizerem "naquele tempo é que se fazia música boa, a música de hoje não presta." e bem sabemos que uma das funções essenciais da arte é representar através de sua expressão o espírito da época onde ela está sendo gerada. Costumes, valores éticos e morais são representados em uma arte conservadora para um período histórico conservador (Amélia que era mulher de verdade), aqueles dias que nossos pais diziam serem os bons tempos. Mas, e os nossos avós, o que achavam da música que os nossos pais gostavam?
Quando os compositores da música moderna e de vanguarda começaram a povoar o mundo da música erudita, a maior de todos os tempos, os puristas encolerizados diziam que aquilo não era música. A caçada ideológica à arte degenerada do início do século 20 pode ter sido mais que um movimento político, uma luta pela sobrevivência de uma corrente de pensamento artístico conservador que não aceita que a evolução de uma expressão artística pode ganhar contornos mais variados. Para uma mente conservadora não parece lúcido pensar que o realismo tenha evoluído para o cubismo. Assim como para um conservador da música progressiva não é possível aceitar que bandas progressivas tenham evoluído para o pop. Mas o pensamento conservador está preso à sua própria dimensão, a seu próprio tempo, o que dentro do universo progressivo encerra uma contradição. Conservadorismo e progressismo são forças antagônicas.
Cada pessoa que consome música, seja por amor à arte ou por entretenimento escolhe aquela que representa suas aptidões. Temos como exemplo hoje no mercado um tipo muito comum de trilha sonora de entretenimento chamada música sertaneja e suas derivações (universitário, arrocha, bachata etc...) cuja função é exclusivamente a diversão e representa muito bem o espírito da época e lugar onde ela se prolifera. Essa aberração incita, entre outras coisas a comportamentos machistas, racistas, sexistas, misóginos, transfóbicos e todo tipo de coisa ruim imaginável e não é de se espantar que encontre entre seus fomentadores o dignatário que se encontra sentado à cadeira de líder do executivo. Bem diferente de Richard Wagner e a Cavalgada das Valquírias que serviram de acompanhamento para o terror promovido pelo 3º Reich, o responsável pelo holocausto judeu.
Eu nasci em 1972 e cresci ouvindo rádio AM com meu pai, ele foi um grande influenciador do meu gosto musical. Ouvíamos de tudo por que a rádio AM tinha essa característica, ouvi música sertaneja (caipira) na Rádio Ahanguera, música brasileira de todo tipo na Rádio Nacional, música erudita na Rádio MEC e por aí afora. Mas foi na adolescência que as minha preferências se cristalizaram através da influência do meu irmão que resolveu trazer discos de rock pra dentro de casa. E por falar em rock, este era um estilo de música marginal quando surgiu. Tão ruim que não mereceu a atenção de seus contemporâneos, Charlie Parker não escondia a decepção ao ver aquilo que Buster Franklin, uma de suas influências no início de carreira tocava tão mal. Curiosamente, anos depois esse seria o estilo impulsionador da maior indústria da mídia internacional e um dos seus mais notáveis subprodutos, os Beatles.
Esses nichos de seguidores fanáticos de tendências de época são frequentemente separados por gerações e cada geração tem seu tempo e suas preferências de consumo de arte e cultura e se acham o supra sumo do entendimento daquilo que consideram ser o mais relevante, significativo e sensacional dentro do escopo da arte que consomem. Vimos uma geração de roqueiros ignóbeis dizerem que rock era música e música clássica não era.
Sendo assim temos que levar em consideração que a música erudita, por ser muito popular na Europa emprestou, mesmo que através de suas raízes barrocas, uma fonte perene para as composições da banda que foi um dos maiores fenômenos de mídia dos anos 70, o ABBA, e esta por sua vez influenciou fortemente artistas subsequentes como Bono Vox e Madonna, só para citar dois deles. Será que os fãs do U2 estavam preparados para a conexão com o quarteto sueco?
E por falar em ABBA, umas das minhas bandas preferidas de todos os tempos, foi na infância que eu os conheci. Aqui entra um dado novo: A música que conhecemos nesse período da vida tende a ficar gravada no nosso gosto para o resto da vida. Isso se chama memória afetiva, uma sensação agradável que fica cristalizada na mente quando você é exposto a uma experiência sensitiva (músicas, filmes, sabores e aromas) em determinados momentos da vida especialmente na infância e adolescencia. É por causa dela que nossos filhos chamam aquilo que ouvimos de "música de velhos". Mesmo que eles tenham discernimento para identificar músicas de melhor qualidade (esse conceito é subjetivo, infelizmente) precisam do sentimento de pertencimento à sua própria época. Tentar empurrar goela abaixo a noção de que a música que você escuta é melhor que a deles só vai gerar conflitos. Apesar de eu ter vivido toda a minha adolescência nos anos 1980 definitivamente não fiz parte da "geração coca-cola" nem fui entusiasta do New Wave e Rock Brasília. Outros movimentos chegaram primeiro e me cativaram. Hoje vemos a geração do Rappa e Charlie Brown Jr que são ícones da juventude assim como foram Renato Russo e a Legião ao seu tempo. Tente convencer essa mesma juventude de que música boa é a que ouviam seus pais...
A memória afetiva musical também cria uma estranha anomalia onde a pessoa fica presa a um loop temporal, ela vai se tornar um adulto, mais tarde um idoso, acorrentado às suas convicções de que não há caminho possível fora daquilo que ela elegeu como o melhor que já foi produzido em todos os tempos. Muitas frustrações advém daí pois, incapaz de expandir seu universo de possibilidades a personalidade não consegue amadurecer. Uma boa educação musical pode favorecer a formação do caráter de um indivíduo, a profusão de variantes de expressão artística contida na música do mundo certamente irá enriquecer irreversivelmente a formação de seus valores mais essenciais. A fraternidade, o respeito, o compartilhamento, tudo isso são dádivas trazidas para aqueles que tem ouvidos para ouvir. Indivíduos infantilizados vivem com medo da vida e fogem para o seu porto seguro, suas memórias afetivas, se escondendo atrás de seus velhos vinis embolorados ouvindo-os exaustivamente até que a agulha encontre o prato. Esse comportamento se reflete na vida pessoal onde seguem titubeando, fugindo de responsabilidades, sempre em cima do muro ou sendo empurrado por outros. Essas pessoas alegam que fora dessa faixa estreita de tempo onde situaram suas preferências musicais não existe mais nada digno de atenção, ou como se diz popularmente "atualmente não se faz nada que presta" embora a minha atualidade não seja a atualidade dos meus filhos, nem dos meus pais e nem dos pais dos meus pais.
Há uma parcela de verdade nisso, é notório que houve uma queda vertiginosa da qualidade das produções. Mas também há outros fatores a serem considerados, um deles é o enorme desfavor que a própria indústria da mídia prestou a arte banalizando-a. Outro é a incrível facilidade de acesso aos meios de comunicação a que tem toda sorte de pseudo artistas, sem haver nenhum tipo de filtro a coisa toda ficou nivelada por baixo.
Mas por outro lado o oceano da web também traz tsunamis de novas tendências de onde se pode pescar muitos peixes exóticos e uma boa diversidade de frutos desse mar. Basta abrir a mente e estar pronto para tirar um pouco o pé de dentro do velho bote salva vidas, amadurecer o pensamento e expandir a consciência através da música.
A resposta a essa pergunta então é sim, a música de hoje presta desde que você a encontre já que a maior parte do que se houve hoje nas rádios, boites e carros de som não chega a ter o mínimo requisito necessário para sequer ser chamado de música.
Débora Zimmer
Adorei o texto e a forma como o conduziu. Mentes progressivas tem que ser ecléticas no tempo e no espaço. Não há lugar para conservadorismo. Infelizmente muitos dos cutuadores dos formatos se encontram entre estes. Na minha infância e adolescência além de Prog, que comecei a ouvir desde os 10 anos de idade também no rádio que a minha mãe ouvia e numa fantástica vitrola telefunken que ocupava Boa parte da nossa sala, ouvia também soul music, erudito, trilhas de filmes, orquestras e música pop que os puristas do prog torceriam o nariz entre muitas outras coisas o que sigo fazendo até hoje. Mais tarde o rock entrou na minha vida com Beatles Hollies Sabbath, Purple, Led, Hendrix etc etc etc . Porém o Prog permeia a minha vida e acredito que mais por minha pluralidade de audições do que por um tipo de ideologia calcada apenas no estilo. Prog é universal! Para fechar. .. Também adoro o Abba! Forte abraço Débora e parabéns pelo artigo.
ResponderExcluirObrigada, Vinício.
ExcluirMuito boa sua reflexão. Ontem estava pensando exatamente num dos pontos que você citou: a própria indústria da mídia contribui para a banalização. Parabéns pelo texto. Um abraço.
ResponderExcluirOi Paulo, obrigado pelo comentário. Estou pensando em escrever especificamente sobre esse tópico. Fique a vontade para vasculhar o blog, acredito que vai encontrar outras coisas que lhe interesse.
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