A Insustentável Leveza do Ser
Foto de Daryl Wilkerson Jr no Pexels
Quando eu era criança, assim que eu aprendi a me equilibrar sobre minhas recém adquiridas pernas de metal os dias chuvosos ganharam um novo significado. Eu me lembro bem de como era antes disso, eu vivia presa à minha condição de mobilidade extremamente reduzida e quando chovia, e chovia mesmo pra valer, eu me prostrava confinada dentro de casa. São lembranças muito ruins de um período extremamente difícil pra mim e minha família.
Mas eu ganhei asas e me pus a desfrutar de minha liberdade explorando novos mundos indo audaciosamente onde nenhuma guria deficiente tinha ido antes. Passei a gostar de dias chuvosos. Saía depois da chuva caminhando sozinha com os pés na água olhando o céu, as coisas, as pessoas... gostava de olhar dentro das cercas das casas vendo as roupas coloridas ainda molhadas nos varais imaginando quem seriam aquelas pessoas e como viviam, gostava de lotes que tinham muitas plantas, e isso era bem comum naquela época, haviam pequenas lavouras como um microcosmo-herança de comunidade de agricultores em uma cidade provinciana recém fundada. Com sorte, o céu se abria no final da tarde e eu podia ver um esplendoroso pôr do sol antes do crepúsculo.
Talvez por causa dessas excursões sempre solitárias eu tenha aprendido a ser sozinha desde de menina e essas imagens do passado pertencem a mim e mais ninguém certamente porque não havia ninguém lá comigo.
Então eu voltava pra casa com os pés molhados e frios e depois de um banho quente ia ver televisão, tomar o café da minha mãe e assim a vida ia. Eu tinha a nítida impressão de que o tempo passava em uma velocidade diferente, quase conspirando ao meu favor. Eu era uma pessoa dependente dos meus pais e irmãos - claro, eu era uma criança e nem passava pela minha cabeça a ideia de responsabilidade ou ser bem sucedida que, aliás é o mito moderno.
Hoje, na casa de meu amigo Fredi, enquanto esperava a chuva passar olhei para a enxurrada correndo no asfalto e me lembrei desse tempo. Me dei conta de que nossa expectativa de vida mudou radicalmente por causa dos últimos eventos, a pandemia e o novo governo fascista estabeleceram um novo normal apoiado na destruição das nossas liberdades individuais e perda daquilo que nós costumávamos chamar dignidade, ou seja, aquilo que conquistamos ao longo da vida e nos proporcionou um relativo estado de bem estar social, o que nos fez acreditar em certa medida que éramos pessoas bem sucedidas.....Já houve um tempo em que vivemos com bem menos e apesar disso não havia a percepção de sermos infelizes.
O que aconteceu? Onde perdemos o fio da história?
A sociedade moderna criou uma sofisticada maquinaria capaz de envolver qualquer cidadão em um contexto no qual ele acredita piamente ser uma engrenagem fundamental do sistema. De fato o sistema precisa dessas engrenagens para funcionar mas qualquer uma que quebre pode ser prontamente substituída, há uma fonte inesgotável delas. Das universidades, cursos superiores e cursos técnicos saem todos os dias exércitos de meritocratas com seus discursos prontos de superação para alçar à categoria de classe média através de seus empregos na administração pública. Podemos ouví-los entoar em seus cânticos a narrativa da infância pobre e como se esforçaram para serem o que são e como se fosse a melhor coisa do mundo estarem onde estão constituíndo o tecido muscular da engrenagem social. Frequentemente os vemos esquecerem suas raízes, são presas fáceis de um sistema que determina sobretudo suas vontades, aspirações e sonhos. Se deixam levar por uma ilusão torpe de um mercado de consumo a lhes vender todo tipo de quinquilharias justificada por seus salários e aí todos os tipos de indústria proliferam, a indústria da moda, dos procedimentos estéticos, do turismo, automobilística, dos fetiches eletrônicos e digitais... Toda sorte de coisa que se precisa ter e ser para que tenhamos a percepção de que são bem sucedidos.
E os que não conseguiram ou não quiseram se superar, são o lixo da sociedade, a peça que não se encaixa no conjunto? Eles, como todos não merecem um lugar ao sol?
E quando o novo normal nos nivelar a todos por baixo? Como vai ser? Os bem sucedidos meritocratas estão preparados para isso?
Tenho a sensação de que o novo tempo nos fez perder as expectativas em alcançar um melhor status porque perdemos a conexão com a nossa essência e passamos a dar demasiada importância em perseguir esse que nos foi apresentado como o cálice sagrado da jornada existencial, o mito do ser bem sucedido. Quando amadurecemos para o mercado de trabalho quase inevitavelmente assassinamos em nós a capacidade natural de contemplação, um dos maiores presentes que recebemos da natureza. Passamos a viver em função das posses e do dinheiro para comprar coisas que não precisamos e quando mais tarde nos damos conta de que não precisávamos de tanta coisa terminamos por revisitar o estado de contemplação, dessa vez por imposição da natureza de nossos corpos e mentes co-mórbidos pelo excesso de trabalho acumulado através dos anos. A juventude já se foi o e vigor para realizar velhos sonhos também. Sair com os amigos, tomar um chopp, ir ao cinema, praticar esportes, viajar, tarefas que deveriam ser fonte de prazer genuíno de repente se tornam um fardo, uma obrigação para ajudar a se livrar de outro fardo ainda maior - o stress adquirido por anos de trabalho exaustivo em busca do tão sonhado sucesso financeiro.
Em benefício de nossa saúde mental e física ninguém deve se sentir obrigado a se tornar bem sucedido. Todo cidadão que não o queira deve ter os mesmos direitos básicos garantidos pelo estado através de serviços de boa qualidade suficientes para se levar uma vida digna simples e modesta, se assim o preferir e voltar os olhos para o que realmente importa, a contemplação da verdade da vida expressa na multiplicidade dos fenômenos naturais que se observam no dia a dia.
E sem obrigações andar com os pés na água, ver o crepúsculo na parada de ônibus, tomar chá com biscoito ao nascer do dia sentada na pedra em cima da montanha... coisas assim.
Débora Zimmer
Simplesmente perfeito. .É assim que penso e é assim que sou! Sempre detestei este sistema moldador e ilusório forjado pela falsa linguagem acadêmica que transforma a todos em robos. Poucos são os que entram por este caminho e que conseguem perceber o erro que cometeram.
ResponderExcluirQue texto bacana! Que sensação bacana poder comungar dos mesmos sentimentos e saber que não há solidão plena em ser um idealista.
ResponderExcluirGrato!