Mãe

    

   




                                                  Foto de Askar Abayev no Pexels

    Em 1988 eu era uma adolescente de 16 anos que tinha acabado de resolver um mal entendido entre a minha mãe e a junta médica que acompanhava o meu desenvolvimento em decorrência das sequelas da poliomielite. Minha mãe, uma pessoa muito simples e sem instrução cujos valores eram calcados na sua formação católica havia me repassado desde criança uma informação dada a ela pelos médicos de que em algum momento até os 18 anos de idade eu poderia recuperar meus movimentos e voltar a andar sem o uso de órteses. Apesar da crença fervorosa que a mantinha esperançosa eu mesma nunca acreditei de fato nesse hipótese já que tenho e sempre tive uma mente científica. O empirismo demonstrava inequivocamente que não haviam traços de recuperação que justificassem tal expectativa e como nesse momento eu já me virava sozinha, ao ir em uma dessas consultas de rotina eu resolvi perguntar ao médico se essa informação procedia porque afinal ainda era algo que me incomodava. Ele apenas confirmou o que eu já sabia, que as sequelas são permanentes e que provavelmente minha mãe se equivocou e interpretou de forma errada uma informação que lhe fora repassada.

    Eu fiquei muito decepcionada, triste não por mim mas por minha mãe que teria o seu sonho despedaçado. Neste dia, quando eu cheguei em casa após a consulta cometi um dos maiores erros da minha vida, eu contei a ela o que o médico me dissera e o semblante dela mudou mostrando claramente o desalento. Na sua simplicidade e falta de conhecimento carregava a culpa pela minha deficiência, a esperança de que algum dia eu me recuperaria a fazia crer que em algum momento se livraria dessa maldição. 

    Mas nesse dia a esperança acabou. Coincidência ou não a partir desse dia ela começou a definhar como se a vida a estivesse abandonando e em consequência da Doença de Chagas que carregava em pouco tempo adoeceu e veio a falecer. Eu não devia ter falado e hoje sou eu quem carrego essa culpa. Minha mãe se foi e eu nem tinha alcançado a maioridade.

    Muitos anos depois eu descobri o que foi falado e que a levou a nutrir tal expectativa. Mas isso não vem mais ao caso.

    Mães são assim. Dão suas vidas pelos filhos e fazem aquilo que acreditam ser o melhor mesmo que eventualmente cometam erros difíceis de consertar. Minha mãe era meu porto seguro, era a única pessoa que sabia quem eu era de verdade porque mães sabem dessas coisas. Mas ela nunca falaria sobre isso, não comigo. Até porque minha mãe não conversava sobre assuntos pertinentes a educação dos filhos, quando raramente o fazia era sobre o prisma religioso. E nós crescemos e nos educamos assim, descobrindo as coisas por conta própria e sofrendo muito por conta disso. Mas mesmo sem falar nenhuma palavra ela me transmitia seu amor incondicional e eu o recebia. A perplexidade em me perceber em um mundo sem ela fez desabar as minhas expectativas justamente em um momento em que eu havia decidido uma mudança na minha vida em função do que eu acabara de descobrir a respeito da minha deficiência. Era a hora de procurar um novo rumo e naquele reveillon de 1988 eu havia prometido a mim mesma que o próximo ano seria diferente. E seria mesmo, o primeiro evento do ano foi a morte dela e exatamente no momento em que eu escrevia a canção "Feliz Ano Novo" gravada no primeiro álbum do DNP em 2010.

    Existem alguns aspectos estranhos da relação com a minha mãe, coisas que ela dizia quando eu era criança e eu terminei por absorver de forma prejudicial. Era evidente pra mim que ela se sentia pressionada pelas "pessoas ao redor" já que acreditava que deveria me dar mais atenção do que aos outros dada a minha condição de deficiente e mesmo criança eu percebia as crises de ciúmes, crises essas que geravam perseguição e assédio moral. Essa pressão fazia com que ela as vezes me defendesse e outras compactuasse com os abusos. Mas ninguém sabia que eram abusos, apenas reproduziam o que tinham sofrido porque afinal o ciclo se repete até que alguém  dê um basta, eventualmente foi o que eu fiz. Desconhecedores de tudo que se passava comigo me tinham como criança excessivamente mimada, não posso julgá-los por isso.

    Um desses aspectos, e talvez o mais importante se baseia em uma teoria da psicanálise que aborda a relação psíquica entre mãe e filho durante a gestação.  Eu descobri recentemente (não vou revelar a fonte) que a minha gestação foi uma gravidez indesejada - ora, mas que novidade! Dirão... Era 1971, em uma favela da periferia da recém construída Brasília para onde as pessoas vinham tentar a sorte, no auge da ditadura militar, apenas 3 anos após o AI-5, as pessoas viviam na miséria sem nenhuma perspectiva de vida e ainda assim se reproduziam como coelhos por causa da ausência de políticas públicas de controle de natalidade e a predominância da mentalidade católica contra os métodos contraceptivos. Além disso toda a carga pela geração, criação e proteção dos filhos recaía sobre as mulheres enquanto os homens se reservavam ao papel de provedores de recursos e muitas vezes nem isso faziam de forma satisfatória. O que esperar de uma mãe nessa situação carregando no seu ventre o oitavo rebento? 

    Apesar do estado mental da mãe transferir para o filho durante a gravidez uma carga psíquica poderosa eu nunca tive a percepção da rejeição porque muita coisa muda depois que a criança nasce e eu fui coberta de afeto por minha mãe, salvo em alguns poucos momentos em que ela falava coisas que até hoje eu nunca entendi o motivo. Mas eu tive a percepção muito poderosa de outro elemento da minha gestação. Minha mãe desejava que eu fosse uma menina. Como eu sei disso? Eu ouvi da boca dela, várias vezes, em conversas com suas amigas, em um certo tom de decepção. À parte da transmissão psíquica talvez ela simplesmente não devesse ter dito isso para eu ouvir e isso pode ter gerado em mim um trauma por não me achar digna do seu amor já que não correspondi às suas expectativas. 

    Eu sei que Freud poderia explicar isso melhor do que eu mas quem me esclareceu foi o psicólogo em uma das várias conversas que tivemos. Então eu recebi isso da minha mãe e por muito tempo na minha vida isso foi um anátema porque eu tinha que viver escondida. Mas no final das contas eu me libertei e terminei me tornando o que ela desejava. 

    Então me tornar mulher teria sido um tributo a minha mãe? Será que esse reducionismo seria suficiente para explicar todas essas revoluções? Se minha mãe tivesse tido condições de ultrapassar a barreira da moralidade subserviente aos costumes da época e me revelasse que sabia que eu era uma menina (porque eu sei que ela sabia) esse fato poderia ter nos proporcionado melhores momentos juntas. 

    Infelizmente isso não aconteceu mas eu tenho certeza de que se estivesse viva ela sentiria muito orgulho pela mulher que eu me tornei.


    Débora Zimmer

    Mãe e cidadã renascentista


Comentários

  1. Sábias são nossas mães que nos correspondem independente do tempo cronológico. Amei, somos portadoras do mesmo mal e nunca nos enganamos, nossas mães por nós amar tanto tinham aquele quê de coragem para acreditar que um dia seríamos perfeitas e aos olhos delas de onde estiverem nos verão sim, perfeitas e somos! Parabéns pelo seu dia e de nossas mães! Sou mãe dos meus 3 filhos de quatro patinhas! Bjs!

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  2. Que texto lindo! Que história incrível. Feliz dia das mães! 😍👏

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  3. Nossa que história, parabéns Débora

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  4. Eu não havia lido esse texto. Estive muito ocupado nesse ano e somente agora, limpando meus emails acumulados, vi o seu.

    Muito bonita sua estória.

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