O "Peruísmo" e a sua contribuição no combate à homofobia/transfobia
Eu tive um irmão gay. Ele se foi em 2001 por causa de uma complicação respiratória causada pelo HIV. Sim, ele era soropositivo. Contraiu o vírus em um de seus relacionamentos no tempo em que morou em São Paulo onde foi trabalhar e morar para fugir dos olhos críticos da sociedade e da família que nunca aceitou a sua condição. Nos últimos dias da sua vida breve morou comigo e nesse curto período me contou muito sobre suas impressões a respeito da vida e suas peripécias amorosas, coisa que eu nunca quis saber mas, como eu costumo dizer, as pessoas precisam falar e nós não temos o direito de lhes negar essa necessidade. Ouvir o outro é um gesto de amor e humanidade, você não precisa concordar, apenas ouvir.
Eu e meu irmão tínhamos um amigo em comum, que também é gay mas achava que ninguém sabia, tirava pinta de machão e dava encima de minhas amigas. Caçoávamos dele com veemência! Tempos depois ele assumiu. Ambos tinham um costume em comum, cada um a sua maneira achava que todos os homens do mundo eram gays e sempre queriam "trazer mais um para a irmandade", expressão jocosa popularizada pelo personagem Seu Peru. Enquanto meu irmão apontava seus dedos libidinosos para os circundantes contemporâneos insinuando que estes "agasalhavam o croquete" ou eram enrustidos, esse amigo insistia em sua teoria homo-libertária de que os grandes personagens históricos eram homossexuais e os maiores feitos da humanidade foram movidos por amores não correspondidos em relacionamentos homoafetivos. Citava ele os casos de Alexandre, o grande e Ghengis Khan entre outros. Meu irmão e seu amigo eram dois discípulos fervorosos de Seu Peru, o grande guru das monas, eles seguiam firmes com sua fé inabalável na dura missão de trazer os homens para sua "irmandade". Eu me diverti com isso até o dia em que percebi que estavam se tornando misóginos, as suas falas eventualmente deixavam escapar ódio e rancor para com as mulheres já que essas eram concorrentes para os seus objetos de disputa - o "homem".
O fato é que o "Peruísmo", doutrina do Seu Peru adotada por uma parte considerável da comunidade gay presta um desfavor ao travestir de humor uma realidade que é triste e até trágica, o preconceito ao qual é submetida a pessoa que por escolha ou imposição da natureza adotou orientação sexual ou de gênero divergente do padrão cisgênero da sociedade e seus costumes vigentes sofrendo violências que chegam em casos extremos a causar morte. É realmente incrível como as pessoas passam a reproduzir comportamentos estereotipados que lhes são desrespeitosos sem perceber o mal que isso causa e o desfavor que eles prestam ás suas próprias causas.
Cheguei até aqui para dizer que eu não acho nem um pouco engraçado comentários do tipo "mais um/uma para a irmandade" ou "fulano/a saiu do armário". Esses bobagens deveriam ser substituídas por "ele/ela se reconheceu e se aceitou como realmente é". Eu sinto de verdade uma grande alegria quando conheço uma pessoa trans porque eu sei que alí está alguém que teve a coragem e a ousadia de ser quem ela nasceu para ser, eu tenho um profundo respeito por essas pessoas que deixaram para trás o fardo da dor de ter que viver trancadas em si mesmas em uma fôrma que não lhes representa. Eu sinto verdadeira alegria quando uma criança manifesta sua verdadeira natureza de gênero e é amparada e acolhida pelos pais porque sei do sofrimento que será evitado, infelizmente eu não tive essa oportunidade. Desde a minha travessia eu tive o privilégio de conhecer pessoas maravilhosas que mesmo sem eu conhecer pessoalmente me ajudaram a me reconhecer e me aceitar. São exemplos de vida com belas histórias de superação, coragem e ousadia. Tive a oportunidade de conversar com algumas e aprendi muito, a elas a minha eterna gratidão.
Mas houveram momentos em que eu tive muita dúvida, tive medo, tive vontade de desistir de tudo, até da própria vida. Isso não é incomum para quem vive nessa situação mas, cada exemplo de superação, cada história de vida foi me dando forças para enfrentar as dificuldades. Em certa ocasião, quando ainda morava em um apartamento próximo do trabalho eu voltava para casa à noite pelo caminho que fazia cotidianamente. Já no final da rua que fica em frente ao condomínio onde morava aconteceu algo inusitado. Vi um rapaz deitado no chão em uma calçada em frente a uma casa. A principio pensei se tratar de alguém que cometera excessos com drogas ou álcool e passaria batido por ele. Observei entretanto algo diferente que me chamou a atenção. Ele estava vestindo uma camisola e isso me desequilibrou imediatamente. Me aproximei e notei que o rapaz estava realmente com problemas. Perguntei a ele se ele precisava de ajuda ao que ele mal conseguia responder balbuciando algumas palavras pois não conseguia se expressar, parecia estar em confusão mental. Insisti algumas vezes até que ele conseguiu dizer que a sua irmã estava vindo buscá-lo. Me ofereci para ajudar com qualquer coisa embora eu mesma não soubesse o que fazer pois estava emocionalmente abalada. Permaneci mais um tempo ao seu lado e depois dele falar com muita dificuldade que a irmã vinha buscar e eu não precisava me preocupar resolvi ir embora com muito pesar. Confesso que, por ter ficado tão abalada tomei a decisão errada e não me perdôo por tê-lo deixado antes que houvesse socorro. Ao chegar em casa eu chorei. Eu nunca soube a história daquele rapaz, não havia como saber se ele era uma pessoa trans com dificuldades ou qualquer outra coisa mas a circunstância me remeteu a tantas histórias que ouvimos todos os dias. Eu chorei, talvez não por ele mas por mim, eu estava paralisada de medo de terminar a vida assim, abandonada pela família e pelos amigos. Eu já havia aceitado a possibilidade de viver só pelo resto de meus dias. Quando isso aconteceu eu já havia tomado a decisão de que assumiria minha transgeneridade mas ainda não tinha comunicado a ninguém. Era um caminho sem volta e o resultado seria imprevisível, felizmente a qualidade e a generosidade das pessoas mostraram um caminho diferente, de acolhimento, respeito e cumplicidade. Nem todos tem essa sorte.
Infelizmente a forma engraçada retratada pelos humoristas não vai ajudar a sociedade entender a dura realidade do universo que existe além da bipolaridade cisgênera. Somente a educação e os bons exemplos podem contribuir para uma sociedade mais inclusiva e igualitária. Eu sinto que devo conduzir a minha vida exatamente como eu sempre fiz, fazendo as coisas que eu sempre fiz e sendo a mesma pessoa. Nenhuma das pessoas que eu tive o privilégio de proporcionar bons momentos através da minha arte deixou de apreciá-la por eu ter me tornado uma mulher. Eu vejo isso como uma dádiva e ao mesmo tempo uma responsabilidade, a missão de mostrar ao mundo que nós, pessoas trans somos exatamente iguais a todas as outras pessoas.
Débora Zimmer
Muito bom ler esses "testemunhos". Tenho certeza de que vai ajudar muita gente com problemas semelhantes e nos ensinar também como mudarmos certas manias que ainda temos ao tratar com qualquer pessoa que não nos sirva de espelho.
ResponderExcluirObrigada pelo comentário Edi. Essa é a minha intenção com esses textos, falar cousas que geralmente não se fala abertamente.
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