Pink Floyd - The Final Cut e o legado de uma época

   

    *Observações no final

     Revisão: Edi Silva

    Pode ter sido em 1984. Embora não costumasse aportar nas praias tupiniquins produtos recém lançados no exterior, havia acabado de chegar às mãos do meu irmão, através do seu patrão, pessoa culta que lhe emprestava discos subversivos para a época, o álbum The Final Cut da banda inglesa Pink Floyd. A audição me cativou quase instantaneamente por motivos que vou tentar explicar mais tarde. Meu irmão, ainda ingênuo com as particularidades do mundo rocker, havia levado uma fita K-7 Scotch Dynarange de 60 minutos para gravar a novidade, tendo destinado apenas um lado dessa para o registro (não me lembro o que tinha do outro lado). A fita tinha a duração de 30 minutos por lado e em um só não coube o disco inteiro, ficando de fora as 4 últimas canções. 

    Assim eu ouvia com frequência essas canções que muito me agradavam. Algo chamava a atenção, porque, na mesma época, eu costumava ver TV com meu pai e sempre víamos dois programas da recém chegada TV Manchete: o Jornal da Manchete, com notícias gerais e o Manchete Panorama, mais voltado às notícias do mundo, geopolítica, geoeconomia, ciências arte e cultura. 

    Haviam notícias sobre uma recente guerra das Malvinas e outros conflitos, isso eu lembro muito bem, e esse disco parecia ser a trilha sonora perfeita. Não sei por que fiz essa associação, já que eu era apenas uma criança e não entendia o que estava acontecendo. Não tinha condições de entender o significado da guerra, nem tampouco as letras das músicas. Apenas o som me guiava. 

    Pouco tempo depois, os tiranos se retiravam do governo no Brasil (não sem deixar profundas cicatrizes) e a redemocratização teve início. Era uma época difícil de se sobreviver com um mínimo de dignidade. A escassez de alimentos e recursos era assustadora. Parecia um cenário pós guerra (e o que aconteceu com o sonho do pós-guerra hein, Maggie?) e o Final Cut parecia ser a trilha sonora ideal. Mas eu era apenas uma criança e não sabia nada do que estava acontecendo. 

    Algum tempo depois, uma inquilina se mudou para o lote vizinho, não me lembro o nome dela, mas o que importa é que em um certo dia ela ouvia em seu aparelho de som uma música que me arrancou do sofá e me levou até o muro que dividia os lotes. Era Final Cut, uma das músicas que não tinha na fita do meu irmão, que eu pude finalmente conhecer junto com Southampton Dock, Not Now, John e Two Suns in the Sunset. Uma coisa eu me lembro: era uma moça bonita e formosa e com jeitinho consegui que me emprestasse a fita para ouvir em casa, afinal, ficar pendurada no muro esperando o momento em que ela quisesse ouvir as músicas novamente era no mínimo desconfortável. Também pude notar que era uma garota bastante solícita, mas eu era uma criança e não sabia nada do que estava acontecendo. 

    E assim a obra estava completa. The Final Cut é praticamente uma obra solo do compositor e baixista Roger Waters com acompanhamento luxuoso de David Gilmour e Nick Mason, além de outros músicos de estúdio, já que Richard Wright não estava mais na banda. 

    Alguns preferem pensar no disco como uma continuação do The Wall, mas eu discordo com veemência. Final Cut mostra bastante maturidade em relação às letras, bem como no que se refere ao material musical. Nesse quesito, visto apenas nos discos Medley, Obscured by Clouds e anteriores, explorando bem o que há de mais importante (na minha opinião, é claro): a melodia por trás da parafernália de sons fantásticos e perturbadores, característica presente nas músicas do Floyd. 

    Sendo assim, não há tempo a perder com viagens instrumentais desnecessárias. A música vai direto ao ponto e a audição flui naturalmente sem interrupções. É importante salientar a riqueza melódica que costura as composições, muitas vezes lembrando hinos protestantes. Esse detalhe trás uma carga ainda mais dramática para obra, induzindo um misto de lamento e clamor. Roger tem seus motivos para ser paranoico, afinal, perdeu o pai e o avô para duas guerras horríveis e o que se sucedeu a esse período deveria ter trilhado caminhos diferentes, mas parece que a humanidade nunca aprende, não é Maggie? O que houve com o sonho do pós-guerra? Maggie, que comeu um croissant argentino de sobremesa e tomou de volta as Falkland, junto com seu amiguinho ator de Hollywood, espalhou a desgraça do neoliberalismo mundo afora. Os tiros, explosões e gritos, que nos perturbam do início ao fim da audição, impõem um tipo de terror psicológico a nos lembrar que nada muda quando o assunto é poder e dominação. Os passados possíveis me fazem pensar se há alguma novidade no fato de a história estar sendo escrita, não a que ainda acontecerá, mas a que já aconteceu... Ao que parece, precisaremos de verdade de um memorial para internar os tiranos incuráveis antes que esses, seus seguidores ou mesmo seus fantasmas, voltem ao poder. 

    Roger, às vezes melancólico, às vezes irascível, nos avisou, mas parece que ninguém prestou atenção. Então ele continua insistindo até que a imagem dos dois sóis no por do sol fale mais alto do que ele e aí sim, poderá ser a última tomada. Alguns dirão que não vivemos mais nesses tempos e essas coisas estão fora do horizonte de eventos e pertencem ao passado. 

    Durante o tempo dos governos de centro-esquerda no Brasil, eu tinha a convicção de que jamais teríamos escassez de recursos novamente como tivemos naquele período tenebroso dos anos de chumbo, entretanto, com a tragédia que se abateu sobre esse país por conta de um governo fascista militarista, fortemente apoiado pelo imperialismo do norte, passei a ter a nítida percepção de ter voltado aos anos 1980.

    Acabei de ouvir Final Cut e ele me parece muito atual. Talvez eu já esteja velha demais pra entender o que está se passando. Espero que a interpretação equivocada do título da obra feita pelo meu irmão não conduza minha mão a fazer o "corte final".

    
    Débora Zimmer

*Eu escrevi o texto conforme as lembranças vinham à tona mas, como a memória é falha alguns eventos podem ter acontecido de forma ligeiramente diferente. Entretanto resolvi manter como estava já que a narrativa ganhou fluidez dessa forma. Em tempo, a guerra das Malvinas aconteceu entre abril e junho de 1982 e o Jornal da Manchete foi ao ar pela primeira vez em junho de 1983 portanto não poderiam ter feito a cobertura do evento. O incidente, não sei por qual motivo, me chamou muita atenção na época e passou a fazer parte das minha memórias, talvez por esse motivo tenha relacionado com a obra assim que a conheci posteriormente. O jornalismo da Manchete ficou conhecido na época pela sua qualidade superior aos concorrentes ao apresentar matérias mais aprofundadas sobre assuntos diversos como cultura e ciências e isso me chamava muito a atenção mesmo sendo criança.

Comentários

  1. Ainda me lembro da moça que tinha esta fita, se chamava Gorete. A fita do meu irmão Iuri começava com Breathe (faixa de abertura do disco Dark Side Of the Moon e era seguido pela sequência do Final Cut. Até lá pela música Fletcher Memorial Home quando a fita acabava. (rsrsr...) A sensação de ouvir as músicas que ainda eram inéditas para a gente, ainda é muito nítida na minha memória. Uma experiência fantástica! Em minha opinião Final Cut é um disco único na história da música. Ah, e os solos de guitarra na medida certa... aí já criaria uma polêmica. Vamos deixar quieto.

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    1. Eu não tinha esses contatos privilegiados. :) Fui conhecer o disco alguns anos depois. Comprei o bolachão e me esbaldei. Parabéns pelo aniversário!

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  2. Não conheço a fundo a obra, mas gosto muito quando tocada por vcs! É um comentário rico de detalhes e lembranças!

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  3. Existe sensível e forte ao mesmo tempo? Acredito que sim. É certo que sim.
    Foi o que senti ouvindo a música, o vídeo, as vozes.
    Li o texto primeiro, depois ouvi só a canção e meu coração ficou muito apertado. Seria preciso ler de novo, ouvindo a música, a interpretação.
    Fiquei imaginando as cenas, não da música, mas da sua ansiedade, do muro e da sua clareza em nós confessar seus sentimentos.
    Não sei vem porque, mas me vi no cinema de interior assistindo RinTinTin. Enquanto todos aplaudiam quando a cavalaria chegava para atacar os índios, que estavam apenas protegendo suas terras... eu chorava.
    Obrigada.

    Meu coração ficou

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  4. Olha... Quanta sensibilidade... Raramente vi uma resenha com tanta qualidade como esta. Deste disco então supera até às mais positivas que eu já li .

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    1. Obrigada Vinicio. É um uma honra pra mim receber um elogio seu.

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