O pudim de leite condensado - Guloseima tóxica?
Abri a geladeira e lá estava ele. Enviado pela esposa de meu irmão, uma baianinha que é uma doçura de pessoa, não sei se para mim ou para meu outro irmão (provavelmente para nós dois) aquela guloseima repousava alí, com sua calda suculenta a me seduzir.
Algumas pessoas que me conhecem muito bem, até bem mais do que eu me conheço sabem que a tal iguaria é uma das coisas mais desejadas no meu cardápio somente estando em pé de igualdade com o bolo com cobertura de abacaxi (aquele que a minha sobrinha Viviane faz com tanto esmero e capricho, uma verdadeira obra de arte da culinária).
Foi impressionante a explosão de sensações prazerosas nas papilas gustativas ao entrar em contato com a sobremesa tão dedicadamente preparada, tanto quanto inevitável o irromper das memórias afetivas relacionadas à tal experiência gastronômica.
Havia uma pessoa igualmente especializada na preparação do citado doce que aqui vou preservar a identidade por questões óbvias. A pergunta é: Como a apreciação de tal maravilha contemporânea poderia ter se tornado um problema em minha vida? A resposta é simples... e complicada ao mesmo tempo! Simples porque faz parte dos protocolos estipulados para a convivência pacífica em um relacionamento dentro dos padrões patriarcais hodiernos não deixar que perceba a contraparte tudo aquilo que se deseja como objeto de satisfação pessoal, é preciso haver um mistério envolvendo os desejos, sejam eles de qualquer natureza inclusive gastronômica para que esse conhecimento ao cair nas mãos do adversário (sim, o relacionamento interpessoal com certo grau de intimidade termina se tornando uma guerra com campo minado e etc...) não se torne objeto de chantagem. Até aí tudo bem porque nessa época eu performava o papel de provedor hétero-normativo-masculino (...). E complicado pelo mesmo motivo mas dentro da ótica que eu só pude perceber depois de ter mudado de lado! Difícil de entender? Não. Em uma guerra cada um usa as armas que tem e saber o que o outro gosta e quase não pode viver sem, se torna informação privilegiada cotada a peso de ouro.
Isso é certo, é ético? Quem pode julgar? Em uma guerra a coisa mais inteligente a se fazer é sobreviver não importando que meios se use pra isso. Nós, mulheres (agora me colocando na condição atual) fomos secularmente colocadas em posição de subserviência pela estrutura social patriarcal e machista, não seria de se esperar que usássemos qualquer arma e estratégia que viesse a cair no colo, mesmo que acidentalmente, para nos proteger dos abusos cometidos por tanto tempo? Então não é conhecido o ditado que diz que um homem se captura primeiro pela boca?
Nos relacionamentos, assim como em uma guerra, vamos sobrevivendo dia após dia para lutar uma nova batalha no dia seguinte. Eu não sei quem inventou isso ou se isso foi se construindo ao longo do tempo mas sei que é horrível e não precisava ser assim. E porque concordamos com isso? Não concordamos, mas somos irremediavelmente laçados e tragados para esse redemoinho de eventos que governam nossa vida adulta. Alguns românticos ainda chegam a chamar isso de maturidade...
E assim foi ao longo dos anos com uma das minhas contrapartes doando seus dotes púdincos (não confundam com pudicos, isso pode até ter acontecido porta com porta mas eu não tenho provas, só convicções) para qualquer um, amigo, vizinho... menos pra mim. Talvez eu não fosse merecedora mesmo, talvez tenha que repensar essa fase da vida e quais erros tão imperdoáveis tenha cometido pra deixar de merecer esse tão efêmero prazer. Ou talvez tenha apenas cometido um erro estratégico mortal, o de deixá-la perceber qual era minha fraqueza gastronômica. O fato é que tal iguaria desapareceu da minha mesa pra sempre e tive que me contentar com substitutos inferiores em qualidade produzidos nas dependências do decadente império gonçalínico. Mas felizmente, até hoje apenas... quando abri a geladeira e me deparei com aquela maravilha! Glória a Deus nas alturas, eis que um antigo hino presbiteriano começou a tocar... Amazing Gracy.
Débora Zimmer - Cidadã Gulosa e Renascentista
"Adorei! Texto doce, cremoso, firme, sem furinhos e terminando com uma calda maravilhosa pra arrematar. Um doce pode ser uma arma e tanto como diz Vladmir Pudin."
ResponderExcluirTexto de André Chayb
É a minha favorita também. Infelizmente meu índice glicêmico em jejum estava em 110 em fevereiro. Limite para a diabetes. Estou reduzindo o doce. Minha filha é muito boa na cozinha, mas pudim ela ainda não fez. Além de outras coisas, ela faz uma quiche de alho poró que me mata.
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